Terminei o namoro com ele: Estupro Corretivo

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Eu terminei o namoro com ele. Eu estava descobrindo minha sexualidade, entendendo que ele não era o que eu queria. Entendendo que o problema não era eu, era ele ser ele e eu preferir ela. E isso tudo no começo dos anos 2000, quando as coisas não eram tão comuns assim. Havia um turbilhão de coisas passando na cabeça, coisas sobre como minha família lidaria com isso, como meus amigos lidariam, como eu lidaria. E eu terminei com ele. Terminei porque sabia que não era pra mim, terminei porque eu tinha 15 anos, não sabia de absolutamente nada sobre a vida, e queria descobrir. Terminei porque ainda que eu fosse hetero, ele não me deixaria descobrir.

Pra ler ouvindo “Me and A Gun”,da Tori Amos, se der. Se não, só lê

Fui caminhando aos poucos, tentando colocar meus pés no chão, acalmar o pensamento. Eu precisava seguir a vida. E então eu a conheci. Ela não era a pessoa mais incrível, nem a mais legal, nem a mais bonita, mas ela era ela. E quanto nos beijamos, eu entendi finalmente porque antes eu não sentia desejo sexual. Embora a confirmação de tudo me trouxesse muito medo, me trouxe também um grande alívio. Eu não tinha nenhum problema, eu só não me encaixava nos parâmetros sociais aceitáveis, e inevitavelmente encontraria um jeito de ajeitar as coisas. Foi aí que ele descobriu. Ele descobriu que eu havia terminado com ele por uma ela. Quanta audácia da minha parte, trocar um “homão da p***” por uma ela. Isso não era pessoal pra mim, era apenas quem eu era. Para ele foi pessoal, foi de propósito, foi afrontoso, foi crime. Um crime pelo qual ele me denunciou, julgou, condenou e executou.

Ele me ligou, pediu para conversarmos. Eu achei que devia isso a ele. Uma conversa franca, e talvez até nos tornássemos amigos. Fui até sua casa, ele me disse diversas coisas, sobre como eu estava errando, como eu era inconsequente, egoísta, suja e indigna de um homem como ele. Pensei que talvez eu merecesse ouvir essas coisas. E então ele me mostrou o quão misericordioso ele era, e me disse que esqueceria tudo, que era apenas voltarmos, e ele me ajudaria a deixar tudo isso para trás. Isso eu não iria fazer, eu não sabia se eu estava certa ou errada, mas tinha certeza que não abriria mão da vida que eu experimentei. Recusei. Neste momento veio a cartada final. Ele não teria desperdiçado dois anos da vida dele com uma mulher que sequer transaria com ele. Ele, em sua posição, não teria sido paciente e gentil com minha virgindade para que no fim das contas eu fosse uma “sapatona nojenta”. A ameça feita foi contar toda a verdade para minha mãe. E disso eu tive medo, muito medo, e burra, escolhi me deitar na cama.

Hoje me culpo por não ter ido embora. Por não ter deixado ele contar a minha mãe, ao meu pai, ao mundo. Ainda hoje essa culpa me consome. Ele deitou sobre mim, me beijou, e eu enjoei, mas continuei ali deitada, parada, congelada de medo, culpa, nojo e impotência. Eu tentava pensar nela, tentava me desligar daquela cena. Não conseguia, quanto mais ele me tocava, mais eu me sentia presa aquele momento. Lembro dele me dizendo que eu estava jogando fora meu caráter, minha dignidade, que eu sempre seria uma mulher suja, e que ao escolher ser “sapatona”, eu estava abrindo mão do fator humanidade, que não passaria de um verme para ele. As palavras resvalavam por mim, e eu não as respondia, só pedia para tudo acabar logo.

Acabou. Ele não me falou mais nada, só observou eu me levantar, arrumar a roupa e sair. Eu fui para casa, tomei banho, e me deitei. Não contei a ninguém na época. Levei anos para me perdoar. Levei anos para parar de pensar nisso. Levei anos para conseguir falar disso com alguém sem sentir vergonha. Acho que acabei deixando aquilo adormecer em mim, vendo aquilo perder forças pouco a pouco, na mesma medida em que eu me fortalecia, repetindo um mantra “não foi minha culpa”.

Com certeza hoje estou bem melhor, e até que de um modo geral, lido bem com isso, mas sei que não posso dizer que superei, que isso é só passado, porque vez em quando sinto essa sombra, me sinto presa embaixo dele, sinto o mesmo enjoo. Não faço ideia de por onde ele anda, e prefiro assim. Não acho que adiantaria agora buscar por justiça, nem sei se isso me traria paz. Só desejo que ele hoje tenha entendido o mal que fez, que tenha arrependimento, não para que ele sinta culpa, mas para que não faça novamente. Não sei o que diria a ele também, mas se um dia ele ler esse texto, quero que ele saiba que ao contrário do que ele me fez acreditar durante anos, eu estou bem, sou uma mulher digna, livre, e orgulhosa de quem me tornei.

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