Calúnia

Photo by Chris Abney on Unsplash

Começa com algo simples, você vê um amigo que experimentou e acha bacana, sei lá, talvez um dia você também pode tentar. É um hobby, dizem, sua vida fica melhor. O desafio parece te rondar, a tentação está cada vez mais perto.
Logo, parece que todo mundo perdeu o receio e posta sobre isso nas redes sociais. Aí você inveja a satisfação delas, quer isso para você. Numa noite, despretensiosamente, você sai do supermercado, olha as compras, vê o seu retrato naquela noite monocromática e acha que sua vida precisa de mais cor. Então volta e na prateleira encontra. Uma pimenteira. Vermelha.
Você se empolga, mal vê a hora de chegar em casa para escolher o melhor lugar. Pimenta tira as más energias da casa, dizem. Você acredita nisso, tanto que também resolve comprar uma comigo ninguém pode. “Mas é uma folhagem imensa”. Não importa, importa é que as energias ruins vão embora. Você não se importa que um móvel ou outro também vá embora, porque tem de escolher entre eles e os vasos, que começam a brotar, em todos os cantos da casa.
Entram em cena as suculentas. Elas são fáceis de cuidar, mal precisa regar. Sua casa se enche delas. Num piscar de olhos, as pessoas nem parecem reconhecer sua casa. “Lindo”, elas dizem. Pronto, é um combustível. Você ouve mais a voz daquele youtuber que tem uma horta no apartamento do que das pessoas da sua família. Acha incrível poder colher o seu próprio hortelã e seu próprio alecrim. Tudo orgânico, orgulha-se.
Os donos das floriculturas passam a te reconhecer de longe. Os das bancas de flores na feira também. Você frequenta cada vez mais esses lugares e com o tempo chega cada vez mais ansiosa. Só se acalma com um vaso de manjericão na mão. Um dia, um deles te puxa pelo braço e diz: ei, você já tentou plantar? E te dá um saquinho de sementes, acompanhado de algumas instruções.
O céu é o limite. No escuro, enquanto todos dormem, você está absorvido em mais um vídeo sobre o poder da compostagem. Olha no relógio, são três da manhã. Quanto tempo se passou, quatro, cinco horas? Você não percebe mais o tempo passar, mas sabe exatamente as estações do ano, porque isso interfere no plantio e na colheita.
Voltando da floricultura, certo dia, você faz o inesperado. Andando pela calçada, estica a mão para dentro de uma grade de um condomínio de luxo e pronto. Rouba uma muda de uma planta aparentemente exótica, recém-plantada. O porteiro estava distraído, não tinha câmeras, você verificou. Nunca pensou ser capaz de um ato semelhante. Você furtou algo, com movimentos premeditados e friamente calculados. Uma ladra, em nome da diversidade da sua flora. Sente culpa. Sente êxtase.
Você deixa de ter uma vida social. Esgueira-se dos compromissos noturnos, diz que cansou dessa vida. Na verdade, tem vergonha de admitir que precisa madrugar para chegar em primeiro lugar na fila de uma feira de plantas. Poucos têm essa credencial, reservada para clientes vips. Você se acha especial. Membro desse urban jungle club. Cool.
Quando os guias gratuitos não são mais suficientes, você passa a fazer cursos, gastar o seu suado dinheiro com técnicas mais sofisticadas de cultivo. Pensa em se mudar. O apartamento torna-se pequeno para todas as plantas que, não cabendo mais no chão, nem nas janelas, nem nas prateleiras pregadas para este fim, passam a invadir as paredes. Você passa a considerar seriamente a ideia de colocar plantas no banheiro. Falha consideravelmente ao tentar convencer a família. Pensa em trocar de família.
Um dia você chega em casa, com uma espécie rara de orquídeas, e encontra todos na sala. Seus pais, irmãos, marido, seus filhos. Amigos distantes. Alguns choram. Seu coração acelera. Seu marido pede calma. Te conduz calmamente para a única cadeira, pois os sofás tiveram que ir embora por causa das plantas. Diz que você vai precisar ser forte. Conta que algumas plantas avançaram para fora das janelas, invadiram outros apartamentos. A prefeitura estava ameaçando uma poda drástica. Você tampa os ouvidos, não quer ouvir nada, ele perde a cabeça.
Seu pai assume a posição e te explica, cheio de dedos, que em casa as espécies passaram a sufocar as crianças, uma delas quase se arriscou com as plantas carnívoras. A criança chora mais alto nessa hora. Disse ainda que você não percebeu isso porque estava ocupada com a drenagem de um vaso. Sua mãe quase confundiu o fertilizante com o Vanish, quando foi te visitar para dar banho nas criançcas. O minhocário havia se tornado grande demais, não fazia mais sentido você vender a máquina de lavar para ganhar mais espaço, como estava pensando. Eles te mostram o seu anúncio vendendo os móveis no OLX. Descobriram tudo.
Estava tudo muito confuso, as palavras te chegavam entrecortadas.
Você não consegue mais ouvir, começa a chorar. É tudo calúnia, grita. Quando quiser, eu posso parar.

 

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