Para além das palavras…

Você está começando a ler um texto. A gente vai ter que se entender por palavras, não temos muita opção. Eu vou usar palavras para tentar fazer chegar em você algumas coisas, algumas idéias. Portanto, estamos aqui limitadas pelas palavras. Só vamos nos entender na medida em que elas deixarem, na medida em que elas derem conta.

A gente sabe que as palavras, danadinhas que são, têm a capacidade de falar, falar e não dizer nada. Fazem as vezes de cortina de fumaça muito melhor do que qualquer cortina de fumaça. A palavra diz, des-diz, machuca, marca pra sempre, traumatiza, encanta, seduz, paralisa ou põe em movimento.

Pessoas que sabem utilizar as palavras em seu favor, podem ter o mundo a seus pés. Pessoas que não sabem oferecer aos outros as palavras certas podem experimentar uma existência de isolamento e incompreensão.

Meu trabalho depende das palavras. Como psicanalista, fico procurando “agulha no palavreiro”. Discursos muitas vezes montados cuidadosamente para disfarçarem dores e afetos mascarados lá no fundo. Uma poluição palavresca por vezes sai do divã a fim de lançar o analista na direção oposta do que se está sentindo, do que se está prestes a se revelar. Me sinto às vezes numa cena de circo de palhaços, daquelas em que um dos participantes aponta algo lá no alto, lá longe, e o outro olha demoradamente tentando achar algo onde não há nada.

E é tão difícil não ser presa fácil de palavras… na verdade, ao psicanalista leva uns bons anos de formação, uns bons anos de análise pessoal, uns bons anos de experiência clínica, uns bons anos de supervisão de analistas mais experientes, para que se consiga não cair feito um patinho. Aos não-psicanalistas, a suscetibilidade aos poderes das palavras pode chegar a níveis críticos de ilusão, fantasia e delírio.

Portanto, de acordo com o que coloquei até aqui, as palavras são por um lado altamente limitantes e por outro altamente ilusórias. E, por essa razão, eu descobri que precisava começar a tentar me abrir e me desenvolver em outros canais expressivos, o que me levou pretensiosamente a sons diferentes (músicas instrumentais, sem as armadilhas das palavras) e à pintura.

Ora, nunca fui criativa. Não sou criativa. Não nasci com nenhum grande talento e nunca fui encorajada a ser criativa. Faço as coisas direitinho. Sou esforçadinha. Performo na média. Mas não mijo fora do penico, não penso fora da caixa, não piro o cabeção. Essas são características que, sei lá por que razões, pessoas nascidas mais recentemente parecem perceber em si mesmo com frequência. De repente foi um tal de nascerem empreendedores sensacionais, pessoas com “sacadas incríveis”, com uma “visão diferenciada”, uma “compreensão ampla e geral” sobre as coisas. Sorte deles. Eu fazia caligrafia, apanhava pra ter letra boa e repetia a tabuada. No máximo virei uma boa repetidora, uma boa obedecedora, uma boa acordadora cedo.

Mas, um tanto quanto tarde, percebi que precisava começar um processo de desconstrução dessa porra toda. De demolição do que eu conseguisse, já que eu já tava começando a fossilizar nos hábitos e na falta de criatividade. Parênteses: vale dizer que não acho, de verdade, que a maior parte das pessoas que se dizem super criativas e inusitadas de fato o sejam. Na verdade acho todo mundo quadrado pa-ra-ca-ra-le-o que fica arrotando arrojo e ineditismo. Continuando…

E daí que agora tô nessa de tentar levar minha vida tentando expressar com palavras apenas 99,9% do que penso e do que sinto. Para dar vazão aos valiosos 0,01% estou pintando. E o que acontece enquanto estou fazendo isso é meio estranho. É o seguinte: minha cabeça não pára de formular sobre as possibilidades de linhas e cores e texturas a serem utilizadas (porque a mente da gente hoje é assim, ela não pára, ela fica turbinada pelo monte de informações e estímulos aos quais são submetidas todo o tempo) mas meus pensamentos não se expressam em palavras, não passa muito pela área do cérebro que “fabrica” o discurso. O que eu ando conseguindo fazer é que estou estabelecendo uma espécie de “gato”, de ligação direta entre o meu desejo estético e as mãos, que vão colocar aquilo em prática. E é esse barato que estou curtindo. Conseguir abrir mão de palavrar a porra toda nem que seja por duas horas semanais.

O que sai disso? O produto desse processo? Não importa.

Se alguém quiser ver algo que eu consigo fazer direitinho, mostro minha caligrafia e recito a tabuada do nove.

 

 

 

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