RIO: a que ponto chegamos

Sou do Rio. Da zona norte do Rio. Mais precisamente da Tijuca, bairro com cerca de 20 favelas, até onde parei de contar. Ah, e falo favela, tá? Fui criada falando favela, olhando pra favela, sentindo o bafo quente da favela no meu cangote por 28 anos em que nasci e morei no Rio. Não me venha com exigências politicamente corretas coleção 2017/2018. Ainda mais que já passei dos 40…

Faz 14 anos que moro em São Paulo. Isso significa que eu não conheço mais o Rio. Não sei mais nada do que é necessário para tentar fugir da violência no Rio. Não sei que horário é melhor passar por onde, não sei andar de BRT e não conheço o Museu do Amanhã. (Aliás, achei uma graça pegar o futuro e enfiar num museu. Principalmente considerando como as coisas estão, na possibilidade do futuro ser essa merda mesmo que parece que vai ser, já tem lá um amanhã gente-boa para garantir. Vai que cola.)

É claro que São Paulo não é flor que se cheire. Cheguei aqui e chorei por 2 anos, dia sim, dia não, no chuveiro. É claro que eu ando de janela fechada no carro. Mas ainda paro no sinal. No Rio eu já não parava 14 anos atrás…

Quando eu dava aulas numa escola estadual do Rio no turno da noite, eu tive meu pequeno “Columbine”: abriram fogo no pátio da escola, briga de facções. Mas ali, pelo menos, naquela noite, ninguém morreu. E eu me senti razoavelmente protegida dentro do apertado banheiro da sala dos professores, rodeada de corpos docentes suados e cagados de medo naquela noite normal na Ilha do Governador, a poucos quilômetros do Aeroporto Internacional.

Quando eu ia para minhas aulas na Federal do Rio, trocando de ônibus na agora desativada estação ferroviária da Leopoldina, eu tive pelo menos três bang bangs ao passar pelo Complexo do Alemão. Em todas as vezes me senti razoavelmente protegida no chão dos ônibus, pela quantidade de corpos trabalhadores e estudantes que me “protegiam” como um escudo de almas amedrontadas.

Quando saía de manhã do prédio, cheguei a ver na calçada de pedras portuguesas as marcas de madrugadas “sangrentas”. Na portaria desse mesmo prédio, a partir de um determinado momento, decidiu-se instalar um botão do pânico para o porteiro a fim de que soasse um alarme em cada apartamento caso estivesse sendo rendido durante o turno de trabalho. Eu, particularmente, achei uma excelente idéia na época.

Nas noites quentes do apartamento em que a vista da sala ficava para trás em comparação com a da lavanderia (Ok, coisa de paulista. Que tal “área de serviço”, como nos velhos tempos?) podíamos ver um espetáculo de riscos iluminados de um morro para o outro. Na época da guerra do Golfo eu me sentia até meio importante de ter um espetáculo semelhante ao que era televisionado pela CNN diariamente ali, ao vivo, acontecendo enquanto eu preparava meu miojo.

Até determinado momento eu me sentia ali uma espécie de Highlander abençoada por alguém, já tendo escutado e vivido muita coisa da pesada mas tendo tido situações de violência no meu cotidiano as quais eu sentia absolutamente controladas. Eu me sentia integradinha mesmo. Qualquer coisa o porteiro aperta o botão e a gente chama a polícia… se abrirem fogo contra o ônibus que eu estiver vai ter muita perna pra acertar antes da minha, muita cabeça na frente. Daí quando eu estiver voltando da Barra de madrugada eu evito o Alto da Boa Vista, passo pela Zona Sul, Rocinha super light, vizu, tranquilo.

Eis que um belo dia eu estava indo para o trabalho, estava no meu carro às 7:35 da manhã, em frente ao gigante estádio do Maracanã. E uns caras que estavam precisando fugir, com umas pistolas lindonas prateadas na mão, me arrancaram pelos cabelos do carro e levaram tudo: carro, bolsa… e me deixaram ali, ajoelhada e desgranhada, na frente do Maracanã, numa linda manhã que estava apenas começando. De certa forma continuei me sentindo Highlander abençoada por alguém, mas comecei a sentir que existe uma coisa chamada estatística. E eu tava ali, brincando com a estatística. Ou eu me apegava com um santo muito forte que mandasse na porra toda, ou eu começava a pensar em me mudar dali.

E nada foi muito planejado, muita água passou embaixo de todas as pontes do rio Pinheiros e do Tietê, e eu vim parar em São Paulo não por ser o lugar mais seguro para morar, mas por um algoritmo que conjuminava minhas necessidades de vida na época.

Eu não sei como é morar no Rio agora. Eu sempre tive muito orgulho daquele 10% da cidade que é bonito. Mas sempre tive consciência de que o mérito era todo da natureza, porque o povo mesmo estava acabando com aquilo. Seja por querer se iludir, e viver de paisagem bonita, e votar em gente calhorda, e achar que “agora vai” por milagre, por Olimpíada ou por Bossa Nova. Mas eu realmente não sei o que aconteceu com o Rio. Foi muita coisa ruim junta, muito político ruim junto, muita gente curtindo droga e achando normal junta, muitos eventos de muitos milhões juntos, e muito “agora vai” junto.

Eu nem sei o que esperar dessa intervenção federal que vai ocorrer agora.

Eu só espero, do fundo do meu coração tijucano, que não seja mais um espetáculo, mais um evento, mais um “agora vai”. Porque, na boa, o Rio não aguenta o próximo Carnaval.

 

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