DECIFRA-ME ou dou-te um pé na bunda

pé na bunda

Estamos muito bem, meu bem.

Cada um com seus gadgets, seus pets, suas coleções, seus trampos, seus projetos, suas prescrições, suas alergias a glúten, a lactose, a humanos.

Cada vez mais individualizados em nossas diferenças, vivemos nossa subjetividade encapsulada, do alto de uma montanha, entre duas percepções que se revezam. De um lado temos o “eu não ligo para o que pensam de mim, eu sou como eu sou” e do outro lado “eu queria ser amado e/ou compreendido e/ou reconhecido”.

Dizemos que não fazemos questão da aprovação alheia, mas queremos criar uma start up, “fazer a diferença” no mundo, ser influenciador nas redes, ter seguidores. Queremos ser percebidos como pessoas incríveis, sensacionais, um exemplo a ser seguido, uma inspiração para muitos. E ao mesmo tempo não estamos nem aí para o que pensam. Difícil, né?

Corta pra clínica.

Escuto algumas vezes ao longo de uma mesma semana o quanto as pessoas gostariam de ser percebidas pelo outro dentro do relacionamento amoroso. O quanto gostariam que o outro percebesse naturalmente sua demanda, suas necessidades, porque dentro da definição do que seria o sentimento idealizado está o “quem ama percebe, quem ama sabe, quem ama não precisa ser avisado, porque está sempre prestando atenção em você”. Então escuto bastante assim: “se eu tiver que falar, que pedir, que mostrar, não tem graça”. Todos querem ser o objeto de atenção, de olhar e de escuta de seu par. E isso deveria ocorrer, no plano ideal, de forma natural e irrestrita.

Ora, vamos lá… estamos absolutamente anestesiados, des-sensibilizados inclusive em relação a nós mesmos. Nossos cinemas gritam com a gente, pulam na nossa frente, os gráficos todos são de alta definição, a arte contemporânea é concretizada em grande parte através do hiper realismo, precisamos de muitos pixels, muitos detalhes, muitas legendas, muitas ajudas, muitas muletas. Tutoriais detalhados, explicações óbvias, não conseguimos preencher espaços vazios com percepção atenta e/ou criatividade.

Somos colocados numa bolha de percepção através de redes, widgets, aplicativos, algoritmos, newsletters, que não conseguimos nem acessar e nem identificar coisas diferentes daquilo que é óbvio e é colocado mastigado em nosso prato. Se não entendemos, nos afastamos, não gostamos, descemos o pau. Um exemplo simples é a quantidade de pessoas que falam, por exemplo, não gostar de inglês porque estudaram por muitos anos e não aprenderam. Ou estudaram pouco, ou ensinaram mal, ou têm muita dificuldade mesmo. Mas… não gostar? É isso que fazemos com o que não entendemos? É mais fácil dizer não gostar do que assumir que não compreendemos ou não conseguimos alcançar, ou mesmo não concordamos.

Recentemente, uma pesquisa mostrou até que os níveis de CO2 no ar estão reduzindo barbaramente nossa capacidade cognitiva. Que antes da revolução industrial eles eram em torno de 280 unidades que eles utilizaram para o estudo, e que atualmente podem chegar a 3.000 unidades dentro de algumas salas de aula americanas.

Voltando: considerando toda essa dificuldade que temos de perceber o que está rolando debaixo do nosso nariz, essa contemporaneidade em que nos negligenciamos a todo momento, esse contexto de massificação facebookiana-googlesística que reduz nosso acesso ao que está definido para a “bolha”, mesmo estando disfarçado de mecanismos que, teoricamente, nos permitem acesso ilimitado a tudo, nos faz termos que nadar incrivelmente mais para chegarmos a percepções realmente singulares, opiniões que de fato reflitam o que a gente pensa, uma compreensão da existência que realmente nos faça sentido e a qual talvez nunca cheguemos, É VIÁVEL que se tenha uma cobrança da pessoa amada de que nosso “radares amorosos” estejam 24 por 7 em alerta e calibrados de “verdadeiro amor” prestando atenção em detalhes, em fazer surpresas, em agradar e identificar a demanda do outro constantemente? Vou passar no DP.

A atenção que devemos dispensar a filhos, atualmente, é bastante penosa nesse contexto. É comum os pais falarem da quantidade de detalhes, de demandas, da dificuldade em dar conta de tanta coisa, de tantas exigências. Escuto diariamente na clínica os pais exauridos por essa responsabilidade de alerta em que filhos nos põe. Perante eles e perante a sociedade. O relacionamento amoroso, embora tenha seus compromissos, seus combinados, seus contratos velados, não pode ser um local simbólico em que a exigência não dê trégua, em que sejamos confrontados todo o tempo com o quanto somos insuficientes, faltosos, decepcionantes.

Que tal pensarmos que o “verdadeiro amor” entende as dificuldades da vida, as exigências, “passa a cola”, dá a pista, escreve a legenda, transmite ao outro, sem rodeios e melindres, o que espera, o que deseja, o que precisa desse outro. Falar sobre si, “entregar o ouro”, colocar-se na relação é um EXTREMO ato de generosidade. Ficar esperando, escondendo o jogo, “vendo até onde vai”, isso não é amor, não é parceria, é VAIDADE e CARÊNCIA.

Vamos nos ajudar no Amor. Fazer junto. Falar e escutar. A nossa contemporaneidade está cada vez mais árida e menos receptiva a sentimentos sublimes, a compreensão, ao coletivo, ao ceder, à generosidade. Tudo conspira para que a gente sinta frustração, desamparo, ansiedade, medo, decepção, insuficiência, falta de perspectiva, incapacidade, despreparo. Em relação a tudo e todos.

Mas daí a gente resolve dar uma chance ao Amor. Então precisamos, no nosso contexto contemporâneo, realizar dois processos nada simples:

  • Nos livrar das fantasias e expectativas babacas hollywoodianas sobre o que vem a ser um relacionamento entre adultos;
  • Enrolar as mangas e trabalhar nesse “projeto” que tem tudo pra dar errado pela forma com que fomos forjados nesse cenário.

Precisamos nos ajudar no Amor.

 

 

 

 

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